Em busca de sorrisos escondidos

Com os pequenos todos felizes mostrando os brinquedos que ganharam

Com os pequenos todos felizes mostrando os brinquedos que ganharam

Uma das primeiras coisas que eu falei quando vim para cá é que não queria ir a um hospital aqui. Para não precisar, trouxe duas bolsas de remédio com absolutamente tudo que eu possa precisar. Sério, cogitamos todas as doenças e tenho medicamento para tudo. Se a saúde pública no Brasil é decadente, imagina só na África. Hoje, pela primeira vez, fui a um hospital aqui. Não, não se preocupem. Eu tô bem, mãe, vivona.

Para os intercambistas que estão aqui, sexta-feira é o dia de folga no trabalho. Na minha escola, a sexta é o dia em que os alunos estudam Swahili, então nós não vamos para o trabalho. Para não ficarmos sem fazer nada, também temos uma programação especial para as sextas que incluem aulas gratuitas de Swahili e visitas a um hospital daqui, o Kenyatta National Hospital.

O hospital é o mais antigo do Quênia, criado em 1901, e aparenta não ser reformado desde então. Ele é também o maior hospital do país, o que assusta pela quantidade de pessoas nos corredores. É gente em tudo que é canto. Na entrada, por exemplo, tem um gramado e, sem brincadeira, acho que tinha pelo menos umas 150 pessoas deitadas lá. Não sei o que estavam fazendo, já que aqui é comum o pessoal aproveitar qualquer jardim para tirar um cochilo, mas se fosse no Brasil eu diria que aquilo era uma fila para atendimento.

Crianças com a Julie e David, intercambistas que foram comigo brincar com eles

Crianças com a Julie e David, intercambistas que foram comigo brincar com eles

Subimos vários andares de escada, ultrapassando as pessoas (os quenianos são bons em corridas, mas é incrível como andam devagar por aí), e lá estavam as pessoas que fomos visitar: mini pessoas lindas com sorrisos escondidos, distantes e apaixonantes. A ala pediátrica do hospital é triste como toda ala pediátrica. O local abriga vários pequenos com todo tipo de doença. No entanto, como a pobreza aqui é gigante, muitas crianças que estão ali foram abandonadas pelos pais que não tem condições de criá-los.

Quase toda sexta-feira o hospital se enche de intercambistas que vão lá brincar com as crianças e dar algumas horas de alegrias para eles que vivem em meio a tanto sofrimento, mas agora todo mundo já está voltando para casa e só fomos eu, Julie e David, canadense e alemão que moram comigo. Foi a minha primeira vez indo visitá-los. Dei papéis, desenhos para colorir e lápis de cor para os menores. Quem pintar tudo direitinho ganha um presente. Enquanto eles estavam concentrados no desenho, parei para conversar com a irmã de uma menininha que estava lá. Ela veio me pedir para contar mais sobre o Brasil e até arranhou umas palavras em português. Após eu falar sobre a minha vida, pedi para ela me falar da dela. Sinceramente, acho que tudo que ela mais queria era alguém pra ouvir o que ela tinha para falar.

Sherry, de onze anos, com seu desenho

Sherry, de onze anos, com seu desenho

Aos 19 anos, super inteligente, ela teve que parar de estudar para cuidar da irmã. Internada no hospital há dois meses, ninguém sabe o que a pequena tem. A doença é séria, ela sofre bastante, mas os médicos ainda não conseguiram detectar o que é. A irmã me contou que sempre teve o sonho de se formar, conseguir ajudar a família e um dia conhecer o Brasil. Sonho este que foi interrompido pela doença da irmã. Os pais disseram que precisavam seguir a vida trabalhando e assim a menininha de 11 anos ficou doente e sozinha. A irmã desistiu dos sonhos para lutar pela vida da caçula e, para viver, era auxiliada por uma senhora de idade que teve um derrame e não pode mais ajudá-la. Falei que ela deveria rezar bastante e nunca abandonar a irmã, que assim ela ficaria curada e ela poderia voltar a estudar e as duas viveriam muito felizes juntas. Ela me deu um abraço e disse “amém”.

Essa foi apenas uma história que aqueles olhos tristes relataram. Brincamos com um grupo de aproximadamente 30 crianças. Fico me perguntando quantas ali não tem uma vida assim. A Julie me contou sobre dois bebês com uma doença que, pelo que ela descreveu, acho que é hidrocefalia. Os pais de ambos os levaram para o hospital em busca de tratamento e os abandonaram ali. Agora eles vivem lá, sem ninguém. Quando estávamos acabando, surgiu uma outra criancinha para brincar. Ele tem alguma doença que não o que é, mas segundo a Julie é um tipo de fungo que faz com que ele fique com uns nódulos gigantes por todo o corpo. Hoje, ele estava com vários na cabeça e rosto, o pior sendo um na boca que o impedia de fechá-la. Ele chegou e foi direto brincar com a Julie. Logo depois ela me contou que, por causa da aparência dele, as outras crianças nunca interagem com ele, então um dia em uma brincadeira de roda, quando ninguém queria segurar na mão dele, ela fez e assim ele nunca mais a largou.

Eu disse que nunca queria ir a um hospital aqui. Me arrependi de ter dito isso. Apesar de ter conhecido muitas histórias tristes, hoje sei que vou dormir feliz por ter colocado sorrisos no rosto deles e esperança no coração dos mais assustados. Valeu a pena.

O pequeno Alfred, que grudou em mim, com o Leitão que ganhou (logo me identifiquei pq tenho vários iguais <3)

O pequeno Alfred, que grudou em mim, com o Leitão que ganhou (logo me identifiquei pq tenho vários iguais <3)

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2 comentários sobre “Em busca de sorrisos escondidos

  1. Que coisa linda, amiga. 😦
    Eu também ficaria com muito receio em ir no hospital porque não saberia se iria aguentar. No de Manaus eu já prefiro ir em último caso, mas imagina na África? Fico feliz em saber que ao menos as pessoas são felizes, que você pode ter dado um pouco mais de esperança pra algumas dessas crianças e que talvez faça elas aguentarem e serem fortes por um tempo maior. Ao ponto das coisas mudarem e elas aproveitarem esses anos lindos do jeito que nós tivemos a sorte de aproveitar.

    A gente tem o mundo na nossa mão e não sabe…

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