Malária, HIV, tuberculose, hepatite, febre amarela. A população queniana sofre com inúmeras doenças que matam pessoas todos os dias aqui. Quando a gente vem pra África, a primeira coisa que todo mundo diz é “já tomou vacina pra não pegar as doenças deles?”. A realidade aqui é totalmente diferente da nossa. Eu vim com muito medo de sofrer ao conhecer pessoas com HIV, principalmente crianças, mas cheguei aqui e algo muito maior, e que parece mais simples, me assustou mais: a fome.
Nos últimos anos, o combate à AIDS rendeu bons resultados em alguns países africanos. No Quênia, entre 2009 e 2011, a ONU registrou queda de 43% no número de novas infecções de HIV entre crianças quenianas. A redução só não foi maior que na Etiópia e Gana. Os dados foram comemorados por aqui e são ótimos. No entanto, infelizmente, uma a cada cinco crianças nascidas aqui ainda pegam HIV da mãe no momento do parto. Ao todo, 1,4 milhão de pessoas são portadoras do vírus da AIDS aqui, segundo dados do Fundo Global divulgados em 2011, e 80 mil pessoas morrem a cada ano por causa da doença no Quênia.
Nairóbi, a capital do Quênia, é uma terra onde você pode perceber facilmente vários problemas desse país. Existe gente muito rica aqui, mas esses são poucos e a maioria vem de outros países. Enquanto isso, muita gente trabalha muito pra ganhar pouco e passa fome por aí. O acesso a educação de qualidade é extremamente difícil, o que me faz acreditar que esses problemas daqui provavelmente ainda vão durar mais tempo.
No meu segundo dia aqui, estava andando no Centro da cidade com um sanduíche em uma mão e uma coca-cola na outra quando um senhor agarrou meu braço com força e me disse “me dá isso”. Juro, ele apertou tão forte que fiquei sem reação e apenas entreguei o que estava comendo. Algo parecido aconteceu com o David, intercambista que mora comigo, no meu primeiro dia aqui: uma mulher nos perseguiu na rua pedindo alguma coisa até a hora que ele deu o que restava de um sanduíche dele.
Ainda de acordo com dados da ONU, 2,4 milhões de pessoas passam fome no Quênia. Ok, todo mundo conhece a fome na África e muita gente ajuda. Ouvi isso de mil pessoas quando decidi ser voluntária aqui. No entanto, toda a ajuda humanitária destinada ao Quênia não é suficiente para resolver os problemas dessa população assolada pela miséria. Quando leio a respeito fico aqui me perguntando o que eu poderia fazer para ajudar.
Decidi escrever sobre a fome depois de ver na minha frente a dor dessas pessoas. Graças a Deus, atualmente, na escola onde trabalho, todas as crianças têm alimentação regular. A comida é também oferecida para os professores e funcionários, mas essa semana, saindo do trabalho, resolvi passar no supermercado para comprar umas coisinhas para casa e me deparei com a realidade queniana. Ela estava ali, no centro de uma capital com mais de 3 milhões de habitantes, na minha frente.
Caminhava com a minha sacola de comidas quando vi um rapaz fraco cair do outro lado da rua. Ele apenas desmaiou. De repente, todas as pessoas ao redor pararam para ver e constataram que ele estava morto. Morreu de fome, de acordo com pessoas que estavam lá. Sou aprendiz de jornalista. Apuro, pergunto. Sou curiosa. Gosto de saber de pessoas, procuro histórias. Me contaram que aquele rapaz estava ali deitado há um tempo, provavelmente morrendo de fome. O que eu vi – a hora da queda – deve ter sido um último suspiro, uma última tentativa de sobreviver. Me peguei refletindo sobre esse momento várias vezes nos últimos dois dias. Quis ter passado por lá antes e notado que ele estava daquele jeito para ter a oportunidade de dar o donut que tinha na bolsa. Quis mudar a realidade de todos aqui. Pensei demais.
Eu vim para o Quênia dar aulas pois acredito no poder da educação. É extremamente difícil ensinar nas condições que temos aqui, mas lutamos. Eu e um grupo de voluntários de diversos países, diversas culturas, mas todos juntos com um objetivo semelhante. Eu não acho que eu vou conseguir, em pouco mais de um mês aqui, acabar com a fome dessas pessoas. Não acho que eu vou ter donuts suficientes na bolsa. Eu não vou conseguir agora, mas meu trabalho e de quem virá depois de mim, continuar meu legado, conseguirá.
Eu tenho um sonho. Eu sonho com um país menos desigual para essas pessoas tão legais daqui. Eu sonho com quenianos capacitados que vão conseguir conquistar o mercado local e serem ricos também, como os europeus que vem pra cá. Eu sonho em ver as crianças da favela de Mathare, onde trabalho, sendo grandes cantoras, médicas, jornalistas e presidentes, como elas me falaram que pretendem ser. Eu sonho, e é por este meu sonho que eu luto.
Eu vim para o Quênia por causa de duas pessoas. Eles são os meus heróis dessa terra. São brasileiros, como eu, que conseguem fazer seus sonhos de ver um Quênia melhor se realizarem. Julia Nogara, fundadora do projeto 50 Sorrisos, e Artur Ribas, fundador do Movimento Contra a Fome na África, obrigada por terem me mostrado esse lugar. A Julia criou o projeto que sustenta a escola em que trabalho até hoje, dando alimentação e material escolar pras crianças, entre outras coisas, através de uma rede de apadrinhamento dos alunos por brasileiros. Eu e minha mãe somos madrinhas e, por ver os resultados desse trabalho, decidi vir pra cá. O Artur foi intercambista da AIESEC Manaus durante a minha gestão como diretora de Intercâmbios para Estudantes e veio para Mombasa, aqui no interior, onde criou um projeto de desenvolvimento sustentável para uma comunidade de lá. Assim eles conseguem produzir seus próprios alimentos e gerar renda. Dois projetos que confio plenamente e tenho orgulho de ter acompanhado desde o início.
Como disse Walt Disney, “se você pode sonhar, você pode fazer”. Sei que não vou mudar a realidade desse país, mas acredito que a educação repassada para as 105 crianças da escola possa formar uma corrente. Se cada um deles for ajudando outras pessoas, teremos milhares. Só é preciso acreditar. Que assim seja. Que a fome não vença e não tire mais o sorriso tão bonito de nenhuma dessas pessoas.